Ah se ela soubesse até que ponto o sonho se tornaria real,
Até que ponto a realidade poderia mudar seu sonho!
Era meio estranho viver na corda bamba das emoções.
Cambalear meio zonza nos próprios medos e frustrações, e
manter-se de pé,
e continuar acreditando, manter-se em fé.
- Fé pequena! Ela
pensava. -Não chegava perto de um grão
de mostarda! Ela imaginava.
A vida, numa correria só, fazia de seus dias e noites uma
alegria rara.
Era uma alegria diferente, nunca antes vivida pelas ruas da
cidade. E por vezes,
lhe parecia estranho que os faróis de todos os carros,
as luzes de cor neon, as taças de champagne,
o amanhecer cinzento
na metrópole, lhe transmitissem a sensação de serem suas únicas testemunhas.
Testemunhas de um coração choroso, escondido atrás do mais
lindo sorriso de todas as luzes. Era a menina do sorriso dourado!
Sim, ela era menina ainda, estava cheia de vigor, de desejo
de provar de tudo um pouco, ainda que no fim, entre todos os sabores, restasse
bem ao longe um gosto amargo na boca.
Mas ela era menina! E precisava buscar nos véus daquela
extraordinária cidade dos sonhos, todas as sensações do mundo.
Era sua hora, seu
momento de menina mulher!
Ela necessitava,
sobretudo, sair do casulo e ver o mundo colorido do lado de fora.
E onde quer que ela chegasse os olhares se iluminavam! Não
porque ela era a mais linda, a mais meiga e doce menina, mas porque ela era a
luz!
Não tinha como não perceber que com ela, todas os sonhos e
fantasias, tornavam-se mais reais e bonitos.
A vida tem dessas coisas, mostrar pra gente, no toque do
outro, no toque do sorriso do outro, no toque do brilho dos olhos negros do
outro, que nem todo perfume é mentira, que nem todo abraço é falsidade, que nem
todo riso precisa ser gargalhada para ser felicidade.
Que almas se encontram sem se abraçarem, que anjos passeiam
nos lugares mais inimagináveis, que meninas se tornam mulheres, quando se
propõem
à entrega na inocência das luzes da cidade.
Mas o amanhecer da aurora sempre chega trazendo consigo a
vida que habita no dia, o sol que faz brilhar a cidade, o caos da realidade.
E ela, menina ainda, pega
seu precioso sonho e guarda na caixinha secreta das ilusões.
É sua caixinha de música, onde uma bailarina dança de forma
engraçada, e não muito comum para caixinhas de músicas de menina, uma canção
que é só sua.
E a noite chega outra vez, mas desta vez, ela, a noite,
grita num gemido assustador como quem chama por socorro.
Já não é mais noite de festa, e as luzes de neon tão pouco
importam, já não se fazem mais ver.
O perfume daquela menina se perdeu pelas ruas da cidade.
E o sorriso dourado está tímido essa noite, está diferente,
está estranhamente triste...
Agora é só ela e o espelho.
Ela, lentamente caminha em sua direção e para diante dele,
na verdade não querendo ver,
Com um medo absurdo de enxergar.
As lágrimas rolam por sua face e ela chora sem cessar.
Por um longo tempo que parece eterno, o choro, inunda seu
rosto, seu corpo, sua alma.
Os soluços, quase
inaudíveis, surgem com uma força de quem precisa muito ser abraçado.
-Essa dor é desnecessária! Ela pensava.
-Ela não é bem vinda, não! Ela repetia e repetia...
Então ela descobre que tem medo do seu reflexo, que tem medo
do escuro da noite, ela tem medo da mulher que pode ter se tornado, e tenta se
esquivar do espelho, mas não consegue.
Uma força, maior que ela, a prende ali, sentada abraçando as
pernas, cheia de medo e de dor.
Ela se olha mais uma vez, e percebe quão longa e dolorosa é
a despedida.
A menina se foi e ela não havia percebido, e aquele adeus
lhe parecia interminável,
Exaustivo e assustador demais para ela.
A mulher que
insistentemente á observa no espelho, lhe parece forte demais,
Cheia de si, cheia de brilho, cheia de fé.
Era absoluta no olhar como no sorriso suave do rosto.
Então, bem ao longe e ao mesmo tempo no pé do seu ouvido,
uma voz firme e cheia de um infinito amor sussurra o seu nome:
-Cris!
Ela se assusta de novo!
-Quem me chama?
Pensa atordoada!
-Minha menina Cris!
-Quem é você?
Pergunta ela, meio com medo da resposta.
-Cris, minha linda menina Cris! Eu sou o teu Deus, aquele
que com amor infinito te amou. Eu sou o teu Deus, que cuida eternamente de ti!
Ela sacode a cabeça, ainda está surpresa e confusa demais...
Ela pensa: - Será que
estou ficando louca? Desde quando posso ouvir a voz de Deus? Será que isso é
possível? Ele existe mesmo?
E de novo ela ouve aquela voz doce, suave e firme:
-Minha Cris, minha linda e amada filha Cris! Olha para o
espelho, não temas, veja o espelho!
Assim como Jó, antes você me conhecia de ouvir falar, mas
hoje os teus olhos me vêem!
Eu sou o teu Deus, o Senhor que te criou. Sou aquele que
caminha contigo lado a lado e por vezes te levo no colo. Sou quem sorriu
contigo todos os teus sorrisos dourados, sem exceção, e sou quem colhe tuas
lágrimas uma a uma sem jamais perder uma gota sequer. Sou quem te fez luz que
ninguém jamais poderá apagar!
Sou quem faz ficar teu perfume quando você passa, sou quem
te coloca pra dormir e te traz coragem ao despertar.
Cris, filha minha, não temas, pois sou contigo, e te farei
andar nas tuas alturas, porque eu, somente eu, sou teu Pai que te chama pelo
teu nome.
Olha para o espelho Cris. Tu podes ver? É você, sou eu. Agora você se torna uma grande mulher porque
teus olhos me vêem!
Vai, na tua pouca força, continue, vai na tua fé menor do
que um grão de mostarda, não pare! Porque aquilo que não podes fazer eu o farei
por ti!
Uma nova vida eu te dou, e em teus caminhos de sorrisos
dourados, e perfumes que jamais vão embora, neles, segue tu em paz, e ao teu
lado eu estarei, em meu colo eu te levarei, e numa ciranda de roda cantaremos a
alegria de sermos uma só carne. Filha e Pai, coração dentro de coração, todos
os dias da tua vida. Porque com amor eterno te amei...
Ela abre os olhos, sorri para espelho, e aquela mulher linda
e forte sorri de volta.
Ela se pergunta se foi um sonho, mas não importa. O sol vem
nascendo em uma linda manhã e ela se descobre uma grande mulher, cheia de vigor
e paz dentro do peito.
E é bem nesse momento, que ela se dá conta de que é a
primeira vez que o espelho sorri pra ela, e ele sorri primeiro.
Adriana M Machado